Powered By Blogger

segunda-feira, 23 de março de 2009

Conferência Nacional de Comunicação, antes tarde do que nunca

DEBATE ABERTO
Conferência Nacional de Comunicação, antes tarde do que nunca
Bastou o governo confirmar a Conferência Nacional de Comunicação e a campanha contra começou. E a ordem veio de cima, bem de cima: da associação internacional dos donos da mídia no continente, conhecida pela sigla SIP (Sociedade Interamericana de Prensa).
Laurindo Lalo Leal Filho
No Brasil, comunicação sempre foi um não-assunto. Contam-se nos dedos os jornais que, em algum momento, abriram espaço para uma reflexão crítica a respeito do próprio trabalho. Para o rádio e a televisão dispensam-se os dedos, não há autocrítica. Se do conteúdo informativo pouco ou nada se fala, sobre as lutas de seus trabalhadores o silêncio é total. Lembro uma campanha salarial liderada pelo Sindicato dos Jornalistas do Paraná que espalhou outdoors por Curitiba com a frase "a nossa dor não sai nos jornais". Naquela época, anos 1980, as dores de outras categorias até apareciam em algumas páginas, menos a dos jornalistas.E os jornalistas, além das suas dores e angústias profissionais, têm muito a falar sobre a sociedade e os meios de comunicação. Muito mais do que seus patrões permitem. Claro que há jornalistas e jornalistas, como lembrou em artigo exemplar nesta página Marcelo Salles. São, de um lado, os que estão comprometidos com as imprescindíveis e necessárias transformações sociais e, de outro, os ventríloquos dos que lhes pagam altos salários no fim do mês. A maioria ganha pouco, trabalha muito e tem que ficar quietinha cumprindo as pautas determinadas pelos interesses empresariais.Essa divisão se já era bem nítida, agora escancarou-se diante da anunciada realização da Conferência Nacional de Comunicação, reivindicação histórica de vários setores da sociedade. Bastou o governo confirmar o evento, a campanha contra começou. E a ordem veio de cima, bem de cima: da associação internacional dos donos da mídia no continente, conhecida pela sigla SIP (Sociedade Interamericana de Prensa). A entidade se diz preocupada "porque os debates (na Conferência) serão conduzidos por ONGs e movimentos sociais que pretendem interferir no funcionamento da imprensa". Expressão que pode ser traduzida pelo temor diante da possibilidade de um debate mais sério e aprofundado sobre o pensamento único imposto pelos grandes meios de comunicação aos nossos países. Afinal, debates como o proposto podem conduzir a ações práticas, capazes de impor limites a esse poder incontrolado.Do lado patronal dificilmente sairia posição diferente, afinal estão defendendo interesses de classe seculares. O triste é constatar que enquanto centenas de trabalhadores da mídia mobilizam-se em todo o Brasil a favor da realização da Conferência, uns poucos jornalistas e radialistas, agem em sentido contrário. Caso emblemático é o de um âncora e de uma repórter da rádio CBN que usaram longos minutos da programação para ecoar pelo país as posições dos seus patrões. Usavam o velho procedimento dos comunicadores populares, decodificando para grandes audiências as concepções ideológicas de quem lhes paga os salários. Esbanjando informalidade, usando a ridicularização como arma, eles levam ao ouvinte as mesmas idéias que os jornais apresentam de forma mais elaborada, nos editoriais ou nas colunas dos seus articulistas. Colaboram, dessa forma, para popularizar as idéias da classe dominante tornando-as dominantes em toda a sociedade, como já notava aquele pensador do século 19, cada vez mais atual.Mas há resistência. Rapidamente os sindicatos dos jornalistas do Distrito Federal e do Estado do Rio de Janeiro foram a público repudiar a posição da SIP e dos seus porta vozes nacionais. Os jornalistas do DF através de sua entidade perguntam "O que pretendem os grandes empresários da comunicação? Pressionar o governo para retirar o apoio à Conferência, facilitando assim a manutenção intacta dos oligopólios que dominam, e que manipulam a informação, em detrimento do interesse público". E os fluminenses afirmam: "A nossa entidade não pode silenciar diante do posicionamento pouco democrático manifestado pela SIP. É preciso deixar bem claro que o patronato mente quando diz que defende a liberdade de imprensa, pois está, isto sim, defendendo de fato a liberdade de empresa, que não aceita a ampliação dos espaços midiáticos a serem ocupados pelos mais amplos setores representativos do povo brasileiro, como são os movimentos sociais".Apesar das pressões, não há dúvida que a Conferência vai sair. Pelos estados já se realizam conferências regionais preparatórias para o encontro nacional marcado para o começo de dezembro, em Brasília. Diante do fato irreversível, as entidades patronais tentam impor suas pautas ao debate. Segundo a Folha de S.Paulo, para Paulo Tonet, da Associação Nacional de Jornais, discutir monopólio e propriedade cruzada é um retrocesso. Para ele o tema tem que ser "conteúdo nacional e igualdade de tratamento regulatório". Mais uma frase que precisa tradução: ele quer dizer que a Conferência só deve tratar dos interesses das empresas de rádio e televisão, preocupadíssimas com a entrada no mercado de radiodifusão das operadoras de telecomunicações.E parte para o sofisma ao chamar de retrocesso a discussão em torno do monopólio e da propriedade cruzada dos meios de comunicação, sem dúvida a maior chaga existente na comunicação social brasileira. Não há como democratizá-la sem que se enfrente com determinação esse obstáculo.O tema geral da Conferência será "Comunicação: Direito e Cidadania na Era Digital". Amplo o suficiente para caber tudo. Daí a importância da mobilização nacional, necessária para impedir que os interesses empresarias da mídia se sobreponham aos da sociedade. Conferências deoutros setores, como saúde, educação e direitos humanos, por exemplo,tem sido decisivas para o encaminhamento das respectivas políticaspúblicas. A da comunicação não pode fugir à regra.
Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP e da Faculdade Cásper Líbero. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial).

quarta-feira, 18 de março de 2009

Tomada de fábrica por operários vira luta nacional nos EUA

A tomada de uma fábrica por seus trabalhadores demitidos em Chicago se converteu em um símbolo nacional de que o resgate do setor financeiro por Washington não se traduziu em um apoio para as maiorias. Desde o presidente eleito Barack Obama e parlamentares federais e
locais até o governador de Illinois já expressaram apoio às demandas dos operários.


David Brooks - La Jornada

Tudo começou quando os 260 operários da fábrica de janelas e portas Republic Windows and Doors foram informados por seus patrões, com apenas três dias de antecedência, do fechamento da indústria, previsto para o fim de semana passado. O fechamento ocorreu depois que o Bank of America suspendeu sua linha de crédito à indústria.Na sexta-feira, dezenas de trabalhadores tomaram a fábrica e se negaram a deixá-la, pois denunciam que não foram notificados com os 60 dias de antecipação previstos em leu e não lhes pagaram o que deviam.Em turnos, dezenas de trabalhadores, membros do sindicato nacional independente United Electrical, Radio and Machine Workers of America (UE), um dos mais progressistas e combativos do país, mantiveram guarda dentro da fábrica, enquanto recebiam visitas ilustres, desde o senador Dick Durbin, o segundo em importância na Câmara Alta do parlamento americano, até os representantes federais Luis Gutiérrez e Jan Schakowksy, e o reverendo Jesse Jackson.A maioria dos trabalhadores são de origem mexicana, junto com um bom número de trabalhadores negros e alguns salvadorenhos e hondurenhos.No domingo, Obama disse: "creio absolutamente que os trabalhadores, que pedem os benefícios e os salários pelos quais trabalharam, estão corretos, e entendo que o que lhes acontece é um reflexo do que ocorre em toda a economia".Nesta terça-feira (9), o governador de Illinois, Rod Blagojevich, ordenou que as secretarias estaduais suspendam todos os negócios com o Bank of America até que este reverta sua decisão e abra uma linha de crédito para a empresa Republic. "Que tome parte do dinheiro federal que recebeu e o invista, para dar crédito necessário para esta empresa, conservando assim os empregos dos trabalhadores", manifestou."O Bank of America recebeu recentemente uma injeção de US$ 25 bilhões de fundos públicos e agora é um exemplo de como, enquanto se resgatam os grandes bancos, os trabalhadores são demitidos sem receber seus salários", afirma o sindicato.O senador Durbin declarou aos meios de comunicação: "entregamos bilhões a bancos como o Bank of America, e a razão para isso era para que continuassem emprestando esses fundos a empresas como a Republica, para que não fossem perdidos postos de trabalho aqui nos Estados Unidos".Enquanto os gerentes da empresa não aparecem, o Bank of America reiterou que não é responsável pelas práticas e decisões da Republica. Mas a ira dos trabalhadores se dirige tanto a seus patrões como também — e é aqui onde encontra eco nacional — contra um resgate financeira que só beneficia os executivos bancários e deixa em completo abandono milhões de trabalhadores, que padecem as conseqüências desta crise."Se não houver uma solução favorável, estamos dispostos a permanecer aqui pelo tempo que for necessário", comentou Leticia Márquez Prado, uma das trabalhadoras membro do sindicato em entrevista telefônica dada ao correspondente do La Jornada. Ela disse que as demandas mínimas eram o pagamento da demissão e das férias, entre outras remunerações que são devidas aos trabalhadores, mas que se desejava buscar uma forma de manter a fábrica em operações, cujo negócio foi impactado de forma severa pela crise econômica, particularmente no setor da construção"O pior disso é que os trabalhadores estavam recebendo salários dignos, com benefícios de seguro de saúde e outros, e se perdem esses empregos só encontrarão, se encontrarem, empregos de salário mínimo e nenhum benefício", explicou Leticia.Estava programada uma reunião entre representantes dos trabalhadores, da empresa e do banco para esta noite, a fim de tentar negociar uma solução.Enquanto isso, o que seria uma notícia local, neste conjuntura se tornou um assunto nacional. Na noite de segunda-feira os telejornais das três principais cadeias de televisão colocaram reportagens sobre a ocupação em suas manchetes principais. Meios de comunicação nacionais eletrônicos e impressos caracterizaram esta ação como algo que se tornou "símbolo" do que estão padecendo os trabalhadores que perderam seus empregos durante esta crise ao longo do país (quase 2 milhões foram demitidos desde dezembro de 2007; mais de meio milhão somente em novembro).Surpreendidos por todo alcance nacional, um dos trabalhadores, Melvin Maclin, também dirigente do sindicato, declarou à agência de notícias AP que "Nunca esperávamos isso. Ao contrário, achavamos que iriamos para a cadeia".A ação gerou solidariedade entre vários sindicatos locais e nacionais, organizações civis e comunitárias, que prestaram apoio material e se somaram à campanha dos trabalhadores, que se revezam na ocupação 24 horas por dia.A polícia não agiu e declarou que não tem nenhuma queixa de "atividade ilegal". "Não vamos nos mover", afirmou Melvin à CBS News. "Já é hora de nós, os pequenos, ficarmos de pé".Silvia Mazon, outra trabalhadora, comentou no New York Times que "querem que os pobres continuem lá embaixo. Pois aqui estamos e não vamos a nenhum lugar até que nos dêm o que é justo e o que nos pertence". "Estamos fazendo história", disse, em outra entrevista.Quase ninguém se lembra de quando foi a última vez que os trabalhadores tomaram uma fábrica nete país (talvez tenha ocorrido no fim dos anos 1980, quando mineiros de Virginia tomaram uma usina de processamento durante uma greve) e muitos dizem que o fato lembra cenas dos anos 1930, quando em Chicago e outras grandes cidades a militância sindical industrial sacudiu e transformou este país.Talvez seja uma fagulha de algo novo (ou o ressucitar de algum mártir de Chicago).
vermelho

segunda-feira, 2 de março de 2009

Guerrilha do Araguaia: Memória afogada não!

Do portal vermelho:

O governo Lula tem duas importantes dívidas com a democracia, em particular com os familiares dos mortos, desaparecidos e vítimas de torturas durante a ditadura militar: abrir os arquivos do regime militar; e devolver aos familiares os restos mortais dos democratas que tombaram em combate e dos assassinados na tortura. Este último objetivo, em relação aos mortos na Guerrilha do Araguaia, se tornará inviável com a construção da Usina Hidroelétrica de Santa Isabel no Rio Araguaia.
Por Aldo Arantes*
A revista Carta Capital deste fim de semana, em artigo publicado sob o título Memória Afogada, informa que, com a construção da Usina Hidroelétrica Santa Isabel, "desaparecidos há mais de três décadas, os corpos de 58 brasileiros mortos durante a Guerrilha do Araguaia, possivelmente assassinados a sangue-frio ou sob tortura pelo Exército, precisam ser encontrados em quatro anos. Ou cairão, para sempre, no esquecimento".
A matéria informa que a usina irá inundar uma área de 24 mil hectares de terras às margens do Rio Araguaia, entre Palestina, no Pará, e Ananás, no Tocantins, exatamente a região onde atuou a Guerrilha.
O presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, afirmou que "se houver a inundação, será uma irreversível perda histórica". Ele sugere que o governo exija que os construtores da hidroelétrica realizem um levantamento arqueológico forense para encontrar as ossadas dos guerrilheiros. Já o presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos do mesmo Ministério, Marco Antônio Barbosa, afirmou que "Isso é um absurdo, é inadmissível que isso ocorra antes da localização dos corpos".
O PCdoB, que encabeçou a guerrilha, tem uma posição francamente favorável à utilização do nosso potencial hidroelétrico para produzir energia. Ressalta a necessidade de rigoroso estudo de impacto ambiental de tal forma que sejam adotadas medidas de mitigação visando reduzir os malefícios causados ao meio ambiente, particularmente em se tratando da construção de obras na Amazônia.
No caso da Usina Santa Isabel, em nome da democracia, dos que tombaram na guerrilha do Araguaia e de seus familiares, é inaceitável a realização desta obra sem que haja a devolução dos corpos dos guerrilheiros mortos na região.
O Brasil, sob o governo Lula, tem obtido importantes conquistas democráticas. Todavia, alagar a região da Guerrilha do Araguaia antes da devolução dos restos mortais é uma decisão inaceitável e o PCdoB deve atuar junto ao governo, de que faz parte, para que isto não ocorra.
Nosso país tem que passar a limpo o período da ditadura militar. Para isto é indispensável abrir seus arquivos, devolver os restos mortais dos combatentes pela democracia e julgar aqueles que cometeram crimes a serviço do regime militar.Estas medidas são absolutamente necessárias para que o país, particularmente sua juventude, conheça o que ocorreu naquele período e o povo fique preparado para impedir que tais fatos não voltem a ocorrer.
* Ex-presidente da UNE e deputado constituinte, secretário de Meio Ambiente do PCdoB

"Resgatar o capitalismo dos capitalistas e de sua ideologia falsária"

Entrevista de David Harvey ao portal carta maior


A perspectiva de uma fragmentação da economia global em estruturas hegemônicas regionais, lutando entre si, deveria despertar os dirigentes políticos, levá-los a deixar de dizer banalidades sobre restaurar a confiança e a fazer o que precisa ser feito para resgatar o capitalismo dos capitalistas e de sua falsária ideologia neoliberal. E sim, isso significa socialismo, nacionalizações, diretrizes estatais robustas, força de colaborações internacionais e uma nova arquitetura financeira internacional. A análise é de David Harvey.
David Harvey - Sin Permiso
Não há muitas vantagens em ver a crise atual como uma erupção superficial gerada por derivas tectônicas profundas no dispositivo espaço-temporal do desenvolvimento capitalista. As placas tectônicas agora estão acelerando seu deslocamento, e quase com toda segurança a probabilidade de que crises do tipo da atual, que vem ocorrendo mais ou menos desde 1980 se incrementará, tornando-se mais frequentes e mais violentas. O modo, a forma, a espacialidade e o momento dessas erupções superficiais tornaram praticamente impossíveis de prever, mas se pode afirmar quase com certeza que vão se repetir com frequência e profundidade crescentes. Desse modo, há que se situar os acontecimentos de 2008 no contexto de uma agenda de maior densidade. Que essas tensões sejam internas à dinâmica capitalista (sem excluir acontecimentos danosos aparentemente externos, como uma pandemia catastrófica), é o melhor argumento, segundo disse Marx, “para que o capitalismo desapareça e se abra caminho para algum modo de produção alternativo e mais racional”. Começo com essa conclusão porque permanece me parecendo vital, para não dizer dramático, como venho dizendo durante anos em meus trabalhos, que a incapacidade para entender a dinâmica geográfica do capitalismo – ou ainda a consideração da dimensão geográfica como algo em certo sentido contingente ou epifenomênico – importa tanto como perder o fio condutor que permite compreender o desenvolvimento geográfico desigual do capitalismo e perder de vista possibilidades de construção de alternativas radicais. Mas isso levanta uma dificuldade aguda que se acrescenta à análise, porque a tarefa de visar a inferir princípios universais com respeito ao papel da produção de espaços, deslocamentos e contextos ambientais na dinâmica do capitalismo a partir de um oceano de particularidades geográficas, amiúde voláteis, nos enfrenta constantemente. Sendo assim, é o caso de perguntar “como integrar a inteligência dos dados geográficos em nossas teorias da mudança evolutiva? Observemos mais detidamente as derivas tectônicas. Como será o mundo em 2025?Em novembro de 2008, pouco depois da eleição de um novo presidente, o Conselho de Inteligência Nacional dos EUA (NCIS, na sua sigla em inglês) publicou suas estimativas délficas sobre como seria o mundo em 2025. E pela primeira vez um organismo norte-americano quase oficial preveria que em 2025 os EUA, ainda que mantivesse seu papel de ator poderoso, senão de mais poderoso da política mundial, já não seria a potência dominante. O mundo seria multipolar e menos monocêntrico, e o poder dos atores não-estatais cresceria. O informe admitia que a hegemonia dos EUA tinha tido suas idas e vindas no passado, mas agora seu predomínio econômico, político e até militar está se desvanecendo de maneira sistemática. Sobretudo (e vale a pena notar que o informe já estava pronto antes da implosão dos sistemas financeiro norte-americano e britânico), “a deriva sem precedentes que, no que concerne à riqueza e ao poder econômico relativo, observamos agora em direção Oeste-Leste seguirá seu curso”.Essa “deriva sem precedentes” inverteu a drenagem de riqueza que fluía inveteradamente do leste, do sudeste e sul da Ásia até a Europa e a América do Norte: uma drenagem que começou no século XVIII – e, desde que se chegou a perceber, lamenta-o o próprio Adam Smith em seu "A Riqueza das Nações" -, mas que se acelerou implacavelmente durante o século XIX. O auge do Japão na década de 60 do século XX, seguido da Coréia do Sul, Taiwan, Cingapura e Hong Kong nos 70, e logo o rápido crescimento da China depois de 1980 (acompanhado, ato contínuo, do surgimento da industrialização na Indonésia, na Índia, no Vietnã, na Tailândia e na Malásia), alteraram o centro de gravidade do desenvolvimento capitalista, ainda que não sem incidentes (a crise financeira do leste e sudeste asiáticos em 1997-98 viu, rápida mas não abundantemente, mais uma vez fluir a riqueza até Wall Street e aos bancos europeus e japoneses). O deslocamento espacial da hegemonia econômicaA hegemonia econômica parece estar deslocando-se em direção a uma constelação de potências no leste asiático, e se as crises, como se tem argumentado, são momentos de reconfiguração radical do desenvolvimento capitalista, então o fato de que os EUA estejam em vias de financiar com enormes déficits a saída de suas dificuldades financeiras e o fato de que os déficits estejam sendo em grande medida cobertos por todos os países com excedentes poupados – Japão, China, Coréia do Sul, Taiwan e os Estados do Golfo – sugerem que estamos às portas de uma deriva desse tipo. Já ocorreram derivas dessa natureza na grande história do capitalismo. Na conscienciosa revisão que Giovani Arrighi faz dessa deriva no seu livro "O Longo Século XX" podemos ver como a hegemonia se desloca desde as cidades-estado de Gênova e Veneza no século XVI a Amsterdã e Países Baixos no XVII, para concentrar-se na Grã Bretanha a partir do século XVIII, antes de que os EUA tomassem o controle depois de 1945. Arrighi destaca vários traços comuns a todas essas transições pertinentes a nossa análise. Cada deriva, observa Arrighi, deu-se na esteira de uma rotunda fase de financeirização (cita aqui com aprovação a máxima do historiador Braudel, segundo a qual a financeirização anuncia o outono de alguma configuração hegemônica). Mas cada deriva traz também consigo uma mudança radical de escala, desde as pequenas cidades-estado iniciais até a economia de proporções continentais dos EUA na segunda metade do século XX. Essa mudança de escala adquire sentido, tendo em conta a regra diretriz capitalista da acumulação sem trégua e do crescimento composto de ao menos um sempiterno 3%.Porém, as derivas econômicas, sustenta Arrighi, não estão determinadas na partida. Dependem da aparição de alguma potência economicamente capaz e política e militarmente disposta a desempenhar o papel de hegemon global (com as vantagens e desvantagens que isso traz consigo). A renúncia dos EUA em assumir esse papel antes da Segunda Guerra Mundial significou um interregno de tensões multipolares que propiciou a deriva bélica (a Grã Bretanha já não estava em condições de afirmar seu anterior papel hegemônico). Muito depende também de como se comporte o antigo hegemon frente à diminuição de seu papel tradicional. Pode passar à história ou de maneira pacífica ou beligerante. Visto assim, mesmo se os EUA seguem mantendo um poder militar avassalador (particularmente, no espaço exterior) num contexto de declive de seu poder econômico e financeiro e de crescente míngua de sua autoridade moral e cultural criam-se cenários inquietantes para qualquer transição vindoura. Ademais, não é óbvio que o principal candidato a substituir os EUA, a China, tenha capacidade para ou vontade de afiançar-se em algum papel hegemônico, pois, ainda que sua população seja já bastante grande para arcar com os requisitos da mudança de escala, nem sua economia nem sua autoridade política (nem sequer vontade política) apontam para uma ascensão fácil ao papel de hegemon global. Dadas as divisões nacionalistas existentes, a idéia de que alguma associação entre as potências do leste asiático poderia cumprir a tarefa torna-se fartamente improvável. E o mesmo ocorre no caso de uma União Européia fragmentada e fraturada ou nas chamadas potências do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). Razão pela qual resulta plausível a predição de que estamos diante de um novo interregno multipolar de interesses encontrados e em conflito. Derivas TectônicasPorém, a deriva tectônica que está deixando o predomínio e a hegemonia norte-americana dos últimos anos para trás é cada vez mais visível. A tese de uma excessiva financeirização somada à tese da “dívida como principal sinal da hegemonia de uma potência mundial” encontrou um eco popular nos escritos de Kevin Phillips. As tentativas agora em curso de reconstruir o predomínio dos EUA mediante reformas na arquitetura do vínculo entre as finanças nacionais e globais parece que não está funcionando. Ao mesmo tempo, as exclusões impostas às tentativas da maior parte do resto do mundo de reconfigurar essa arquitetura provocarão com quase total segurança fortes tensões, quando não conflitos econômicos abertos. Porém, derivas tectônicas desse tipo não se produzem magicamente. Ainda que a geografia histórica de uma deriva de hegemonia, segundo a descreve Arrighi, manifeste uma clara pauta, e ainda que a história tenha deixado claro que essas derivas vêm sempre precedidas de períodos de financeirização, Arrighi não oferece uma análise profunda dos processos geradores dessas derivas. É verdade que menciona a “acumulação sem trégua”, e por conseguinte, a síndrome do crescimento (a regra de 3% do crescimento composto) como elementos críticos explicativos da deriva. Isso implica que a hegemonia se desloca com o curso do tempo, de entidades políticas pequenas (isto é, Veneza) a outras maiores (por exemplo, os EUA). Também argüi que a hegemonia tem que radicar naquela entidade política que produz o grosso do excedente (ou para a qual flui o grosso do excedente em forma de tributos ou exações imperialistas). De um produto global em torno de 45 trilhões de dólares em 2005, os EUA participam com 15 trilhões, o que o converte, por assim dizer, no principal acionista que domina e controla o capitalismo global, com capacidade para ditar (como é o caso de fazer em seu papel de acionista em chefe nas instituições internacionais como o Banco Mundial e o FMI) as políticas globais. O informe do NCIS baseia parte de suas previsões na perda do predomínio paralela à manutenção de uma posição robusta na minguante participação no produto global dos EUA em relação ao resto do mundo, em geral e a China, em particular.Contudo, como o próprio Arrighi assinala, o curso político dessa deriva está muito longe de ser claro. A aposta dos EUA pela hegemonia global sob Woodrow Wilson durante e imediatamente depois da Primeira Guerra Mundial viu-se obstaculizada pelas preferências isolacionistas prevalecentes na tradição política nacional norte-americana (daí o colapso da Liga das Nações), e só depois da Segunda Guerra Mundial (na qual a população norte-americana não queria entrar, até que ocorreu Pearl Harbour) os EUA se liberou ao seu papel de hegemon global mediante uma política exterior bipartidarista, ancorada nos Acordos de Bretton Woods, que estabeleceram a forma de organizar a ordem internacional do pós-guerra (frente à Guerra Fria e à ameaça que um comunismo internacional em plena onda de propagação representava para o capitalismo). Que os EUA vinham se desenvolvendo inveteradamente como um estado capaz em princípio de cumprir um papel de hegemon global tornou-se evidente desde os primeiros dias de sua caminhada como nação. Estavam preparados com as doutrinas oportunas, como a do “Destino Manifesto” (expansão geográfica em escala continental, eventualmente até o Pacífico e o Caribe, antes de tornar-se global, sem necessidade de conquistas territoriais) ou a Doutrina Monroe, que exigia das potências européias que deixassem em paz as Américas (a doutrina foi na realidade formulada pelo ministro britânico do exterior, Canning, na década de 20 do século XIX, e foi quase imediatamente seguida pelos EUA). Os EUA possuíam o dinamismo necessário para aspirar a uma crescente participação no produto global, e estiveram visceralmente comprometidos com uma ou outra versão do que se pode qualificar de maneira mais feliz como “mercado encurralado” ou capitalismo “monopólico”, sustentado por uma ideologia apologética do individualismo mais descarnado. De modo, pois, que há um sentido no qual se pode dizer que os EUA vinham se preparando, durante a maior parte de sua história, para o papel de hegemon global. A única coisa surpreendente nisso é o tempo que levou para cumprir esse projeto, e que foi a Segunda Guerra, não a Primeira, a ocasião que os levou finalmente a jogar esse papel, permitindo que os anos do entre-guerras fossem tempos de multipolaridade e competição caótica entre ambições imperiais, como as que agora teme vislumbrar o informe do NCIS para 2025. As derivas tectônicas agora em curso estão, contudo, profundamente influenciadas pela desigualdade geográfica radical nas possibilidades econômicas e políticas de responder à crise atual. Permitam-me ilustrar o modo como hoje se opera essa desigualdade pela via de um exemplo bastante plástico.À medida que a crise iniciada em 2007 foi se aprofundando, muitos tomaram o partido de uma solução plenamente keynesiana como a única capaz de tirar o capitalismo global do desastre em que está agora metido. Com este objetivo, propuseram-se uma variedade de pacotes de estímulos e medidas de estabilização bancária. Muitas dessas propostas foram até certo ponto postas em prática em vários países e de maneiras diferentes, na esperança de fazer frente às dificuldades crescentes. O espectro de soluções oferecidas variava imensamente segundo as circunstâncias econômicas e os perfis imperantes na opinião pública (colocando, por exemplo, a Alemanha frente a França e a Grã Bretanha na União Européia).Mas pensemos, por exemplo, nas distintas possibilidades econômico-políticas abertas aos EUA e para a China e nas conseqüências potenciais tanto para a deriva da hegemonia como para o modo possível de resolver a crise. China, EUA e as soluções keynesianasNos EUA, qualquer tentativa de falar de uma solução keynesiana adequada tem sido condenada na partida, levantando-se barreiras econômicas e políticas praticamente impossíveis de derrubar. Para funcionar, uma solução keynesiana precisaria de financiamento massivo e duradouro, com déficit. Tem-se dito com razão que o intento de Roosevelt de regressar a um orçamento equilibrado em 1837-38 é o que voltou a afundar os EUA na depressão e que foi a Segunda Guerra que salvou a situação, e não o temerário projeto rooseveltiano de financiamento com déficit que foi o New Deal. Assim, pois, mesmo que as reformas institucionais e umas políticas mais igualitárias tenham posto os fundamentos da recuperação que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, o New Deal como tal fracassou a ponto de resolver a crise nos EUA. O problema para os EUA em 2008-09 é que parte de uma posição de endividamento crônico com o resto do mundo (vem tomando empréstimos a um ritmo de mais de 2 milhões de dólares por dia nos últimos dez ou mais anos), e isso significa uma limitação econômica para as dimensões do déficit extra que agora pode permitir-se. (O que não foi um problema sério para Roosevelt, que começou com um orçamento limitado). Há também uma limitação geopolítica, posto que o financiamento de qualquer déficit extra depende da disposição de outras potências (principalmente do leste asiático e dos Estados do Golfo) em emprestar. Tendo em conta ambas as limitações, há que se tomar por certo que o estímulo econômico factível nos EUA não será nem o bastante amplo nem o bastante duradouro para subvencionar a tarefa de reabilitar a economia. Este problema é exacerbado pela relutância ideológica de ambos os partidos em aceitar os enormes montantes de gasto deficitário requeridos para sair da crise.Ironicamente, e ao menos em parte, porque a administração republicana anterior trabalhou de acordo com o princípio de Dick Cheney, segundo o qual “Reagan nos ensinou que os déficits não importam”. Como disse Paul Krugman, o primeiro advogado público de uma solução keynesiana desse contexto, os 800 bilhões de dólares votados com dentes arreganhados pelo Congresso em 2009, ainda que sejam melhores do que nada, estão muito longe de serem suficientes. Seria preciso uma cifra da ordem dos 2 trilhões de dólares, uma quantidade excessiva dado o nível atual do déficit estadunidense. A única opção econômica possível seria mudar o débil keynesianismo dos gastos militares excessivos por um keynesianismo muito mais forte, voltado a programas sociais. Cortar pela metade o orçamento de defesa norte-americano (aproximando-o dos níveis europeus em termos percentuais ao PIB) poderia resultar tecnicamente útil. É o caso de dizê-lo: quem quer que proponha coisa semelhante cometerá suicídio político, dada a posição política mantida pelo Partido Republicano e por muitos democratas. A segunda barreira a ser derrubada é mais puramente política. Para funcionar, o estímulo tem de ser administrado de tal forma que se assegure seu gasto em bens e em serviços para que a economia recupere alegria. Isso significa que há que dirigir todas as ajudas a quem efetivamente delas fará uso e gastará recursos, quer dizer, as classes sociais mais humildes, porque as classes médias, postas a gastar algo, o mais provável é que o façam puxando a alça de valores de ativos (comprando casas hipotecadas que são executadas em leilões, por exemplo), e não comprando mais bens e serviços. Em todo caso, nos maus tempos muita gente tende a usar as receitas extraordinárias inopinadamente recebidos para cancelar dívidas ou para poupar (como ocorreu em muito boa medida com o reembolso de 600 dólares propiciado pela administração Bush no começo do verão de 2008).O que parece prudente e racional desde o ponto de vista do orçamento doméstico se torna danoso para o conjunto da economia. (Analogamente: os bancos tem procedido racionalmente ao servirem-se do dinheiro público recebido para enriquecerem ou para comprar ativos, antes que para emprestá-los). A hostilidade preponderante nos EUA a “disseminar a riqueza” e a gestionar qualquer ajuda pública que não sejam os cortes fiscais aos indivíduos vem do núcleo duro da doutrina ideológica neoliberal (focalizada, mas de modo algum confinada no Partido Republicano), segundo a qual “os lares sabem mais”. Essas doutrinas chegaram a gozar de ampla aceitação nos EUA, como se se tratasse de um evangelho, durante trinta anos de doutrinamento político neoliberal. Segundo se arguiu em outra ocasião, “agora, somos todos neoliberais”, no mais das vezes sem sabê-lo. Há uma aceitação tácita, por exemplo, de que a “repressão salarial” - um componente chave do atual problema – é um “estado normal” das coisas nos EUA. Uma das três patas de uma solução keynesiana – maior capacidade de negociação dos trabalhadores, salários em alta e redistribuição favorável para as classes baixas – é atualmente impossível do ponto de vista político nos EUA. A pura sugestão de que um programa assim equivalha a “socialismo” faz o establishment político tremer. Os trabalhadores organizados não são suficientemente fortes (depois de serem durante trinta anos massacrados pelas forças políticas), e não se vê nenhum outro movimento social amplo o bastante para pressionar por uma redistribuição a favor das classes trabalhadoras. Outro modo de alcançar objetivos keynesianos é o fornecimento de bens coletivos. Isso, tradicionalmente, tem implicado investimentos em infraestrutura física e social (os programas WPA [Works Progress Adminstration] dos anos 30 do século passado foram um precedente). Disso se segue a tentativa de incluir nos pacotes de estímulo programas para reconstruir e ampliar infraestruturas públicas de transporte e comunicações, energia e outras obras públicas em paralelo a um incremento do gasto em atenção sanitária, educação, serviços municipais, etc. Esses bens coletivos têm potencial para gerar multiplicadores tanto no emprego como na demanda efetiva de bens e serviços. Mas o que se presume é que esses bens entrariam, em dado momento, na categoria de “gastos públicos produtivos” (quer dizer, que estimulam um crescimento ulterior), não que se convertam numa série de “elefantes brancos” públicos que, como observou Keynes em seus dias, carecem de outra utilidade que não aquela de fazer as pessoas cavarem buracos para fechá-los logo em seguida.Em outras palavras, uma estratégia de investimentos em infraestrutura tem de orientar-se para a sistemática recuperação do crescimento de 3% através do metódico redesenho de nossa infraestrutura e dos nossos modos de vida urbanos. Isso não pode funcionar sem uma planificação estatal refinada, aliada a uma base produtiva já existente que possa aproveitar-se das novas infraestruturas. Também aqui, o processo dilatado de desindustrialização experimentado pelos EUA nas últimas décadas, assim como a intensa oposição ideológica à planificação estatal (elementos esses incorporados por Roosevelt ao New Deal, e que persistiram até os anos 60, para serem abandonados quando do assalto neoliberal dos 80 a esse particular exercício de poder do Estado) e a óbvia preferência pelos cortes fiscais frente às transformações públicas das infraestruturas, torna impossível nos EUA a operação de uma solução permanente. Na China, por outro lado, dão-se realmente tanto as condições políticas como as econômicas para uma solução plenamente keynesiana, e há ali signos transbordantes de que essa será provavelmente a via a ser seguida. Para começar, a China possui uma grande reserva de excedente estrangeiro em dinheiro e isso torna mais fácil o financiamento da dívida partindo dessa base do que de um dos gastos da dívida já acumulada, como no caso dos EUA. Vale à pena notar também que desde meados dos 90 os “ativos tóxicos” (os empréstimos que não funcionam) dos bancos chineses – (algumas estimativas os situam nos 40% de todos os empréstimos em 2000) desapareceram da contabilidade bancária a mercê dos investimentos ocasionais de excedente em dinheiro procedente das reservas do comércio exterior.Os chineses tiveram em funcionamento durante muito tempo o equivalente a um programa TARP [o programa norte-americano de resgate bancário posto em prática nos últimos meses de 2008], e evidentemente sabem como manejá-lo (ainda que muitas das transações tenham a marca da corrupção). Os chineses têm suficiente capacidade econômica para embarcarem num programa massivo de financiamento com déficit e dispõem de uma arquitetura financeira estatal centralizada apta, se lhe propuserem, a administrar esse programa com eficácia. Os bancos, durante muito tempo de propriedade estatal, que foram privatizados para atender às exigências da OMC (Organização Mundial do Comércio) podem vir a atrair capital e perícia estrangeiros, mas podem todavia serem facilmente submetidos à vontade do estado central, enquanto que nos EUA mesmo o mais longínquo signo de diretriz estatal, para não falar de nacionalização, dá motivo a todos os tipos de furores políticos. Analogamente, não há ali [China] a menor barreira ideológica para uma generosa redistribuição de recursos a favor dos setores mais necessitados da sociedade, ainda que possa haver necessidade de vencer os encouraçados interesses dos membros mais ricos do partido e de uma incipiente classe capitalista. A imputação segundo a qual isso seria tanto como o “socialismo”, ou inclusive até pior, o “comunismo”, apenas despertaria sorrisos divertidos na China. Mas a reaparição na China do desemprego em massa (de acordo com os últimos informes, a desaceleração dos últimos meses já teria gerado já 20 milhões de desempregados), assim como os indícios de um mal-estar social prolongado e aceleradamente crescente, forçarão seguramente o Partido Comunista chinês a empreender massivas redistribuições, estejam ou não ideologicamente convencidos da sua justiça.No começo de 2009, essa política redistributiva parece primeiramente destinada às regiões rurais atrasadas, para onde regressaram os trabalhadores emigrantes que perderam seus empregos, frustrados com a constatação da escassez de postos de trabalho nas zonas manufatureiras. Nessas regiões, nas que faltam infraestrutura social e física, um investimento robusto de recursos por parte do governo central contribuirá para aumentar as receitas, para expandir a demanda efetiva e para dar o tiro de saída do longo processo de consolidação do mercado interno chinês. Em segundo lugar, há um forte desejo de investir massivamente em infraestrutura que ainda falta na China. - Em troca, os cortes fiscais só tem ali atrativos políticos – e ainda que seja possível que alguns desses investimentos terminem sendo “elefantes brancos”, a probabilidade de que seja assim ali é farta mas baixa, dada a imensa quantidade de trabalho de que se necessita para integrar o espaço nacional chinês e, assim, enfrentar-se o problema do desenvolvimento geográfico desigual entre as regiões costeiras de alto desenvolvimento e as províncias empobrecidas do interior.A existência de uma larga – ainda que problemática – base industrial e manufatureira necessitada de racionalização espacial torna mais provável que o esforço chinês entre na categoria do gasto público produtivo. No caso chinês boa parte do excedente pode ser canalizado até a produção futura de espaço, e isso mesmo admitindo que a especulação nos mercados imobiliários urbanos em cidades como Xangai, ou mesmo nos EUA, é parte do problema e não pode, por conseguinte, converter-se em parte da solução. Os gastos em infraestrutura, sempre que sejam feitos numa escala suficientemente grande, são de grande alento e servem tanto para canalizar o trabalho excedente como para reduzir as possibilidades de distúrbios sociais, contribuindo também, ademais, para impulsionar o comércio interno. Implicações internacionaisEssas possibilidades completamente distintas que os EUA e a China têm de propiciarem uma solução plenamente keynesiana guardam profundas implicações internacionais. Se a China emprega mais recursos procedentes de suas reservas financeiras para impulsionar seu mercado interno, como com quase total segurança vai se ver forçada a fazer por razões políticas, deixará menos recursos disponíveis para possíveis empréstimos aos EUA. O descenso das compras de bônus do tesouro estadunidense terminará por forçar uns tipos de interesses mais altos, o que incidirá negativamente na demanda interna norte-americana, a qual, por sua vez e a menos que haja uma gestão meticulosa, poderia disparar o que todo mundo teme e que até agora conseguiu evitar: uma derrubada do dólar.Uma desvinculação paulatina dos mercados norte-americanos e a sua progressiva substituição pelo próprio mercado interno como fonte de demanda efetiva da indústria chinesa alterariam significativamente os equilíbrios de poder (um processo que, diga-se de passagem, estaria carregado de tensões, tanto para a China como para os EUA). A divisa chinesa se robustecerá necessariamente frente ao dólar (uma situação tão largamente pretendida como temida pelas autoridades norte-americanas), o que obrigará aos chineses a se basearem mais em seu mercado interno para a demanda agregada. O dinamismo que disso resultaria no interior da China (contrastável com as condições de recessão duradoura que prevalecerão nos EUA) atrairá mais produções de matérias primas à órbita comercial chinesa e corroerá a importância relativa dos EUA no comércio internacional. O efeito global de tudo isso será a aceleração do deslocamento da riqueza, do oeste para o leste, na economia mundial e a rápida alteração dos equilíbrios de poder econômico hegemônico. O movimento tectônico que operará o equilíbrio do poder capitalista global intensificará todo tipo de ramificações econômicas e políticas imprevisíveis num mundo em que os EUA deixarão de estar numa posição dominante, mesmo que sigam mantendo um poder importante. A suprema ironia, deve-se dizê-lo, é que as barreiras políticas e ideológicas postas nos EUA a qualquer programa plenamente keynesiano contribuirão seguramente para acelerar a derrubada do poder americano nos assuntos globais, apesar de que as elites de todo o mundo (inclusive as chinesas) preferissem preservar esse domínio o maior tempo possível. Que um genuíno keynesianismo seja ou não suficiente para que a China (junto a outros estados em posição similar) consiga compensar o fracasso inevitável do keynesianismo reticente ocidental é questão em todo caso aberta. Mas essas diferenças, somadas ao eclipse da hegemonia norte-americana, bem poderiam ser o prelúdio de uma fragmentação da economia global em estruturas hegemônicas regionais que poderiam terminar lutando tanto entre si com tanta facilidade como colaborando na questão miserável de dirimir quem tem de arcar com os estragos da depressão duradoura.Esta não é uma idéia exatamente alentadora, mas ter em mente a possibilidade de uma perspectiva desse tipo poderia talvez contribuir para despertar boa parte do mundo ocidental para a apercepção da urgência da tarefa que tem diante de si; que seus dirigentes políticos deixem de dizer banalidades sobre restaurar a confiança se ponham a fazer o que há a ser feito para resgatar o capitalismo dos capitalistas e de sua falsária ideologia neoliberal. E sim, isso significa socialismo, nacionalizações, diretrizes estatais robustas, força de colaborações internacionais e uma nova e farta, mas inclusiva (“democrática”, se posso ousar a dizê-lo assim) arquitetura financeira internacional, pois que assim seja...David Harvey é geógrafo, sociólogo urbano e historiador social marxista. É professor da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY) e autor de vários livros e artigos, dentre os quais se destaca "A Produção Capitalista do Espaço", publicado no Brasil pela Annablume Editora. Vem dando seminários sobre O Capital, de Karl Marx, há 40 anos. Mantém esta página www.davidharvey.org Tradução: Katarina Peixoto